terça-feira, 18 de outubro de 2011

DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DO INDIVÍDUO

Márcia Regina Terra

O estudo do desenvolvimento do ser humano constitui uma área do conhecimento da Psicologia cujas proposições nucleares concentram-se no esforço de compreender o homem em todos os seus aspectos, englobando fases desde o nascimento até o seu mais completo grau de maturidade e estabilidade. Tal esforço, conforme mostra a linha evolutiva da Psicologia, tem culminado na elaboração de várias teorias que procuram reconstituir, a partir de diferentes metodologias e pontos de vistas, as condições de produção da representação do mundo e de suas vinculações com as visões de mundo e de homem dominantes em cada momento histórico da sociedade.

Dentre essas teorias, a de Jean Piaget (1896-1980), que é a referência deste nosso trabalho, não foge à regra, na medida em que ela busca, como as demais, compreender o desenvolvimento do ser humano. No entanto, ela se destaca de outras pelo seu caráter inovador quando introduz uma 'terceira visão' representada pela linha interacionista que constitui uma tentativa de integrar as posições dicotômicas de duas tendências teóricas que permeiam a Psicologia em geral - o materialismo mecanicista e o idealismo - ambas marcadas pelo antagonismo inconciliável de seus postulados que separam de forma estanque o físico e o psíquico.

Um outro ponto importante a ser considerado, segundo estudiosos, é o de que o modelo piagetiano prima pelo rigor científico de sua produção, ampla e consistente ao longo de 70 anos, que trouxe contribuições práticas importantes, principalmente, ao campo da Educação - muito embora, curiosamente aliás, a intenção de Piaget não tenha propriamente incluído a idéia de formular uma teoria específica de aprendizagem (La Taille, 1992; Rappaport, 1981; Furtado et. al.,1999; Coll, 1992; etc.).

O propósito do nosso estudo, portanto, é tecer algumas considerações referidas ao eixo principal em torno do qual giram as concepções do método psicogenético de Piaget, o qual, segundo Coll e Gillièron (1987:30), tem como objetivo "compreender como o sujeito se constitui enquanto sujeito cognitivo, elaborador de conhecimentos válidos", conforme procuraremos discutir na seqüência deste trabalho.

1) A visão interacionista de Piaget: a relação de interdependência entre o homem e o objeto do conhecimento

Introduzindo uma terceira visão teórica representada pela linha interacionista, as idéias de Piaget contrapõem-se, conforme mencionamos mais acima, às visões de duas correntes antagônicas e inconciliáveis que permeiam a Psicologia em geral: o objetivismo e o subjetivismo. Ambas as correntes são derivadas de duas grandes vertentes da Filosofia (o idealismo e o materialismo mecanicista) que, por sua vez, são herdadas do dualismo radical de Descartes que propôs a separação estanque entre corpo e alma, id est, entre físico e psíquico. Assim sendo, a Psicologia objetivista, privilegia o dado externo, afirmando que todo conhecimento provém da experiência; e a Psicologia subjetivista, em contraste, calcada no substrato psíquico, entende que todo conhecimento é anterior à experiência, reconhecendo, portanto, a primazia do sujeito sobre o objeto (Freitas, 2000:63).

Considerando insuficientes essas duas posições para explicar o processo evolutivo da filogenia humana, Piaget formula o conceito de epigênese, argumentando que "o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas" (Piaget, 1976 apud Freitas 2000:64). Quer dizer, o processo evolutivo da filogenia humana tem uma origem biológica que é ativada pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social - que o rodeia (Coll, 1992; La Taille, 1992, 2003; Freitas, 2000; etc.), significando entender com isso que as formas primitivas da mente, biologicamente constituídas, são reorganizadas pela psique socializada, ou seja, existe uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer.

Esse processo, por sua vez, se efetua através de um mecanismo auto-regulatório que consiste no processo de equilíbração progressiva do organismo com o meio em que o indivíduo está inserido, como procuraremos expor em seguida.

2) O processo de equilibração: a marcha do organismo em busca do pensamento lógico

Pode-se dizer que o "sujeito epistêmico" protagoniza o papel central do modelo piagetiano, pois a grande preocupação da teoria é desvendar os mecanismos processuais do pensamento do homem, desde o início da sua vida até a idade adulta. Nesse sentido, a compreensão dos mecanismos de constituição do conhecimento, na concepção de Piaget, equivale à compreensão dos mecanismos envolvidos na formação do pensamento lógico, matemático. Como lembra La Taille (1992:17), "(...) a lógica representa para Piaget a forma final do equilíbrio das ações. Ela é 'um sistema de operações, isto é, de ações que se tornaram reversíveis e passíveis de serem compostas entre si'".

Precipuamente, portanto, no método psicogenético, o 'status' da lógica matemática perfaz o enigma básico a ser desvendado. O maior problema, nesse sentido, concentra-se na busca de respostas pertinentes para uma questão fulcral: "Como os homens constroem o conhecimento?" (La Taille: vídeo). Imbricam-se nessa questão, naturalmente, outras indagações afins, quer sejam: como é que a lógica passa do nível elementar para o nível superior? Como se dá o processo de elaboração das ideias? Como a elaboração do conhecimento influencia a adaptação à realidade? Etc.

Procurando soluções para esse problema central, Piaget sustenta que a gênese do conhecimento está no próprio sujeito, ou seja, o pensamento lógico não é inato ou tampouco externo ao organismo mas é fundamentalmente construído na interação homem-objeto. Quer dizer, o desenvolvimento da filogenia humana se dá através de um mecanismo auto-regulatório que tem como base um 'kit' de condições biológicas (inatas portanto), que é ativado pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social (Rappaport, op.cit.). Id est, tanto a experiência sensorial quanto o raciocínio são fundantes do processo de constituição da inteligência, ou do pensamento lógico do homem.

Está implícito nessa ótica de Piaget que o homem é possuidor de uma estrutura biológica que o possibilita desenvolver o mental, no entanto, esse fato per se não assegura o desencadeamento de fatores que propiciarão o seu desenvolvimento, haja vista que este só acontecerá a partir da interação do sujeito com o objeto a conhecer. Por sua vez, a relação com o objeto, embora essencial, da mesma forma também não é uma condição suficiente ao desenvolvimento cognitivo humano, uma vez que para tanto é preciso, ainda, o exercício do raciocínio. Por assim dizer, a elaboração do pensamento lógico demanda um processo interno de reflexão. Tais aspectos deixam à mostra que, ao tentar descrever a origem da constituição do pensamento lógico, Piaget focaliza o processo interno dessa construção.

Simplificando ao máximo, o desenvolvimento humano, no modelo piagetiano, é explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer. Esses fatores que são complementares envolvem mecanismos bastante complexos e intrincados que englobam o entrelaçamento de fatores que são complementares, tais como: o processo de maturação do organismo, a experiência com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio.

O conceito de equilibração torna-se especialmente marcante na teoria de Piaget pois ele representa o fundamento que explica todo o processo do desenvolvimento humano. Trata-se de um fenômeno que tem, em sua essência, um caráter universal, já que é de igual ocorrência para todos os indivíduos da espécie humana mas que pode sofrer variações em função de conteúdos culturais do meio em que o indivíduo está inserido. Nessa linha de raciocínio, o trabalho de Piaget leva em conta a atuação de 2 elementos básicos ao desenvolvimento humano: os fatores invariantes e os fatores variantes.

(a) Os fatores invariantes: Piaget postula que, ao nascer, o indivíduo recebe como herança uma série de estruturas biológicas - sensoriais e neurológicas - que permanecem constantes ao longo da sua vida. São essas estruturas biológicas que irão predispor o surgimento de certas estruturas mentais. Em vista disso, na linha piagetiana, considera-se que o indivíduo carrega consigo duas marcas inatas que são a tendência natural à organização e à adaptação, significando entender, portanto, que, em última instância, o 'motor' do comportamento do homem é inerente ao ser.

(b) Os fatores variantes: são representados pelo conceito de esquema que constitui a unidade básica de pensamento e ação estrutural do modelo piagetiano, sendo um elemento que se tranforma no processo de interação com o meio, visando à adaptação do indivíduo ao real que o circunda. Com isso, a teoria psicogenética deixa à mostra que a inteligência não é herdada, mas sim que ela é construída no processo interativo entre o homem e o meio ambiente (físico e social) em que ele estiver inserido.

Em síntese, pode-se dizer que, para Piaget, o equilíbrio é o norte que o organismo almeja mas que paradoxalmente nunca alcança (La Taille, op.cit.), haja vista que no processo de interação podem ocorrer desajustes do meio ambiente que rompem com o estado de equilíbrio do organismo, eliciando esforços para que a adaptação se restabeleça. Essa busca do organismo por novas formas de adaptação envolvem dois mecanismos que apesar de distintos são indissociáveis e que se complementam: a assimilação e a acomodação.

(a) A assimilação consiste na tentativa do indivíduo em solucionar uma determinada situação a partir da estrutura cognitiva que ele possui naquele momento específico da sua existência. Representa um processo contínuo na medida em que o indivíduo está em constante atividade de interpretação da realidade que o rodeia e, consequentemente, tendo que se adaptar a ela. Como o processo de assimilação representa sempre uma tentativa de integração de aspectos experienciais aos esquemas previamente estruturados, ao entrar em contato com o objeto do conhecimento o indivíduo busca retirar dele as informações que lhe interessam deixando outras que não lhe são tão importantes (La Taille, vídeo), visando sempre a restabelecer a equilibração do organismo.

(b) A acomodação, por sua vez, consiste na capacidade de modificação da estrutura mental antiga para dar conta de dominar um novo objeto do conhecimento. Quer dizer, a acomodação representa "o momento da ação do objeto sobre o sujeito" (Freitas, op.cit.:65) emergindo, portanto, como o elemento complementar das interações sujeito-objeto. Em síntese, toda experiência é assimilada a uma estrutura de idéias já existentes (esquemas) podendo provocar uma transformação nesses esquemas, ou seja, gerando um processo de acomodação. Como observa Rappaport (1981:56),

os processos de assimilação e acomodação são complementares e acham-se presentes durante toda a vida do indivíduo e permitem um estado de adaptação intelectual (...) É muito difícil, se não impossível, imaginar uma situação em que possa ocorrer assimilação sem acomodação, pois dificilmente um objeto é igual a outro já conhecido, ou uma situação é exatamente igual a outra.

Vê-se nessa idéia de "equilibração" de Piaget a marca da sua formação como Biólogo que o levou a traçar um paralelo entre a evolução biológica da espécie e as construções cognitivas. Tal processo pode ser representado pelo seguinte quadro:



ambiente
è
desequilíbrio
è
adaptação
è
equilibração majorante
í î
Assimilação
acomodação



Dessa perspectiva, o processo de equilibração pode ser definido como um mecanismo de organização de estruturas cognitivas em um sistema coerente que visa a levar o indivíduo a construção de uma forma de adaptação à realidade. Haja vista que o "objeto nunca se deixa compreender totalmente" (La Taille, op.cit.), o conceito de equilibração sugere algo móvel e dinâmico, na medida em que a constituição do conhecimento coloca o indivíduo frente a conflitos cognitivos constantes que movimentam o organismo no sentido de resolvê-los. Em última instância, a concepção do desenvolvimento humano, na linha piagetiana, deixa ver que é no contato com o mundo que a matéria bruta do conhecimento é 'arrecadada', pois que é no processo de construções sucessivas resultantes da relação sujeito-objeto que o indivíduo vai formar o pensamento lógico.

É bom considerar, ainda, que, na medida em que toda experiência leva em graus diferentes a um processo de assimilação e acomodação, trata-se de entender que o mundo das idéias, da cognição, é um mundo inferencial. Para avançar no desenvolvimento é preciso que o ambiente promova condições para transformações cognitivas, id est, é necessário que se estabeleça um conflito cognitivo que demande um esforço do indivíduo para superá-lo a fim de que o equilíbrio do organismo seja restabelecido, e assim sucessivamente.

No entanto, esse processo de transformação vai depender sempre de como o indivíduo vai elaborar e assimilar as suas interações com o meio, isso porque a visada conquista da equilibração do organismo reflete as elaborações possibilitadas pelos níveis de desenvolvimento cognitivo que o organismo detém nos diversos estágios da sua vida. A esse respeito, para Piaget, os modos de relacionamento com a realidade são divididos em 4 períodos, como destacaremos na próxima seção deste trabalho.

3) Os estágios do desenvolvimento humano

Piaget considera 4 períodos no processo evolutivo da espécie humana que são caracterizados "por aquilo que o indivíduo consegue fazer melhor" no decorrer das diversas faixas etárias ao longo do seu processo de desenvolvimento (Furtado, op.cit.). São eles:

· 1º período: Sensório-motor (0 a 2 anos)

· 2º período: Pré-operatório (2 a 7 anos)

· 3º período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos)

· 4º período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante)

Cada uma dessas fases é caracterizada por formas diferentes de organização mental que possibilitam as diferentes maneiras do indivíduo relacionar-se com a realidade que o rodeia (Coll e Gillièron, 1987). De uma forma geral, todos os indivíduos vivenciam essas 4 fases na mesma seqüência, porém o início e o término de cada uma delas pode sofrer variações em função das características da estrutura biológica de cada indivíduo e da riqueza (ou não) dos estímulos proporcionados pelo meio ambiente em que ele estiver inserido. Por isso mesmo é que "a divisão nessas faixas etárias é uma referência, e não uma norma rígida", conforme lembra Furtado (op.cit.). Abordaremos, a seguir, sem entrar em uma descrição detalhada, as principais características de cada um desses períodos.

(a) Período Sensório-motor (0 a 2 anos): segundo La Taille (2003), Piaget usa a expressão "a passagem do caos ao cosmo" para traduzir o que o estudo sobre a construção do real descreve e explica. De acordo com a tese piagetiana, "a criança nasce em um universo para ela caótico, habitado por objetos evanescentes (que desapareceriam uma vez fora do campo da percepção), com tempo e espaço subjetivamente sentidos, e causalidade reduzida ao poder das ações, em uma forma de onipotência" (id ibid). No recém nascido, portanto, as funções mentais limitam-se ao exercício dos aparelhos reflexos inatos. Assim sendo, o universo que circunda a criança é conquistado mediante a percepção e os movimentos (como a sucção, o movimento dos olhos, por exemplo).

Progressivamente, a criança vai aperfeiçoando tais movimentos reflexos e adquirindo habilidades e chega ao final do período sensório-motor já se concebendo dentro de um cosmo "com objetos, tempo, espaço, causalidade objetivados e solidários, entre os quais situa a si mesma como um objeto específico, agente e paciente dos eventos que nele ocorrem" (id ibid).

(b) Período pré-operatório (2 a 7 anos): para Piaget, o que marca a passagem do período sensório-motor para o pré-operatório é o aparecimento da função simbólica ou semiótica, ou seja, é a emergência da linguagem. Nessa concepção, a inteligência é anterior à emergência da linguagem e por isso mesmo "não se pode atribuir à linguagem a origem da lógica, que constitui o núcleo do pensamento racional" (Coll e Gillièron, op.cit.). Na linha piagetiana, desse modo, a linguagem é considerada como uma condição necessária mas não suficiente ao desenvolvimento, pois existe um trabalho de reorganização da ação cognitiva que não é dado pela linguagem, conforme alerta La Taille (1992). Em uma palavra, isso implica entender que o desenvolvimento da linguagem depende do desenvolvimento da inteligência.

Todavia, conforme demonstram as pesquisas psicogenéticas (La Taille, op.cit.; Furtado, op.cit., etc.), a emergência da linguagem acarreta modificações importantes em aspectos cognitivos, afetivos e sociais da criança, uma vez que ela possibilita as interações interindividuais e fornece, principalmente, a capacidade de trabalhar com representações para atribuir significados à realidade. Tanto é assim, que a aceleração do alcance do pensamento neste estágio do desenvolvimento, é atribuída, em grande parte, às possibilidades de contatos interindividuais fornecidos pela linguagem.

Contudo, embora o alcance do pensamento apresente transformações importantes, ele caracteriza-se, ainda, pelo egocentrismo, uma vez que a criança não concebe uma realidade da qual não faça parte, devido à ausência de esquemas conceituais e da lógica. Para citar um exemplo pessoal relacionado à questão, lembro-me muito bem que me chamava à atenção o fato de, nessa faixa etária, o meu filho dizer coisas do tipo "o meu carro do meu pai", sugerindo, portanto, o egocentrismo característico desta fase do desenvolvimento. Assim, neste estágio, embora a criança apresente a capacidade de atuar de forma lógica e coerente (em função da aquisição de esquemas sensoriais-motores na fase anterior) ela apresentará, paradoxalmente, um entendimento da realidade desequilibrado (em função da ausência de esquemas conceituais), conforme salienta Rappaport (op.cit.).

(c) Período das operações concretas (7 a 11, 12 anos): neste período o egocentrismo intelectual e social (incapacidade de se colocar no ponto de vista de outros) que caracteriza a fase anterior dá lugar à emergência da capacidade da criança de estabelecer relações e coordenar pontos de vista diferentes (próprios e de outrem ) e de integrá-los de modo lógico e coerente (Rappaport, op.cit.). Um outro aspecto importante neste estágio refere-se ao aparecimento da capacidade da criança de interiorizar as ações, ou seja, ela começa a realizar operações mentalmente e não mais apenas através de ações físicas típicas da inteligência sensório-motor (se lhe perguntarem, por exemplo, qual é a vareta maior, entre várias, ela será capaz de responder acertadamente comparando-as mediante a ação mental, ou seja, sem precisar medi-las usando a ação física).

Contudo, embora a criança consiga raciocinar de forma coerente, tanto os esquemas conceituais como as ações executadas mentalmente se referem, nesta fase, a objetos ou situações passíveis de serem manipuladas ou imaginadas de forma concreta. Além disso, conforme pontua La Taille (1992:17) se no período pré-operatório a criança ainda não havia adquirido a capacidade de reversibilidade, i.e., "a capacidade de pensar simultaneamente o estado inicial e o estado final de alguma transformação efetuada sobre os objetos (por exemplo, a ausência de conservação da quantidade quando se transvaza o conteúdo de um copo A para outro B, de diâmetro menor)", tal reversibilidade será construída ao longo dos estágios operatório concreto e formal.

(d) Período das operações formais (12 anos em diante): nesta fase a criança, ampliando as capacidades conquistadas na fase anterior, já consegue raciocinar sobre hipóteses na medida em que ela é capaz de formar esquemas conceituais abstratos e através deles executar operações mentais dentro de princípios da lógica formal. Com isso, conforme aponta Rappaport (op.cit.:74) a criança adquire "capacidade de criticar os sistemas sociais e propor novos códigos de conduta: discute valores morais de seus pais e contrói os seus próprios (adquirindo, portanto, autonomia)".

De acordo com a tese piagetiana, ao atingir esta fase, o indivíduo adquire a sua forma final de equilíbrio, ou seja, ele consegue alcançar o padrão intelectual que persistirá durante a idade adulta. Isso não quer dizer que ocorra uma estagnação das funções cognitivas, a partir do ápice adquirido na adolescência, como enfatiza Rappaport (op.cit.:63), "esta será a forma predominante de raciocínio utilizada pelo adulto. Seu desenvolvimento posterior consistirá numa ampliação de conhecimentos tanto em extensão como em profundidade, mas não na aquisição de novos modos de funcionamento mental".

Cabe-nos problematizar as considerações anteriores de Rappaport, a partir da seguinte reflexão: resultados de pesquisas* têm indicado que adultos "pouco-letrados/escolarizados" apresentam modo de funcionamento cognitivo "balizado pelas informações provenientes de dados perceptuais, do contexto concreto e da experiência pessoal" (Oliveira, 2001a:148). De acordo com os pressupostos da teoria de Piaget, tais adultos estariam, portanto, no estágio operatório-concreto, ou seja, não teriam alcançado, ainda, o estágio final do desenvolvimento que caracteriza o funcionamento do adulto (lógico-formal). Como é que tais adultos (operatório-concreto) poderiam, ainda, adquirir condições de ampliar e aprofundar conhecimentos (lógico-formal) se não lhes é reservada, de acordo com a respectiva teoria, a capacidade de desenvolver "novos modos de funcionamento mental"? - aliás, de acordo com a teoria, não dependeria do desenvolvimento da estrutura cognitiva a capacidade de desenvolver o pensamento descontextualizado?

Bem, retomando a nossa discussão, vale ressaltar, ainda, que, para Piaget, existe um desenvolvimento da moral que ocorre por etapas, de acordo com os estágios do desenvolvimento humano. Para Piaget (1977 apud La Taille 1992:21), "toda moral consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por estas regras". Isso porque Piaget entende que nos jogos coletivos as relações interindividuais são regidas por normas que, apesar de herdadas culturalmente, podem ser modificadas consensualmente entre os jogadores, sendo que o dever de 'respeitá-las' implica a moral por envolver questões de justiça e honestidade.

Assim sendo, Piaget argumenta que o desenvolvimento da moral abrange 3 fases: (a) anomia (crianças até 5 anos), em que a moral não se coloca, ou seja, as regras são seguidas, porém o indivíduo ainda não está mobilizado pelas relações bem x mal e sim pelo sentido de hábito, de dever; (b) heteronomia (crianças até 9, 10 anos de idade), em que a moral é = a autoridade, ou seja, as regras não correpondem a um acordo mútuo firmado entre os jogadores, mas sim como algo imposto pela tradição e, portanto, imutável; (c) autonomia, corresponde ao último estágio do desenvolvimento da moral, em que há a legitimação das regras e a criança pensa a moral pela reciprocidade, quer seja o respeito a regras é entendido como decorrente de acordos mútuos entre os jogadores, sendo que cada um deles consegue conceber a si próprio como possível 'legislador' em regime de cooperação entre todos os membros do grupo.

Para Piaget, a própria moral pressupõe inteligência, haja vista que as relações entre moral x inteligência têm a mesma lógica atribuída às relações inteligência x linguagem. Quer dizer, a inteligência é uma condição necessária, porém não suficiente ao desenvolvimento da moral. Nesse sentido, a moralidade implica pensar o racional, em 3 dimensões: a) regras: que são formulações verbais concretas, explícitas (como os 10 Mandamentos, por exemplo); b) princípios: que representam o espírito das regras (amai-vos uns aos outros, por exemplo); c) valores: que dão respostas aos deveres e aos sentidos da vida, permitindo entender de onde são derivados os princípios das regras a serem seguidas.

Assim sendo, as relações interindividuais que são regidas por regras envolvem, por sua vez, relações de coação - que corresponde à noção de dever; e de cooperação - que pressupõe a noção de articulação de operações de dois ou mais sujeitos, envolvendo não apenas a noção de 'dever' mas a de 'querer' fazer. Vemos, portanto, que uma das peculiaridades do modelo piagetiano consiste em que o papel das relações interindividuais no processo evolutivo do homem é focalizado sob a perspectiva da ética (La Taille, 1992). Isso implica entender que "o desenvolvimento cognitivo é condição necessária ao pleno exercício da cooperação, mas não condição suficiente, pois uma postura ética deverá completar o quadro" (idem p. 21).

4) As conseqüências do modelo piagetiano para a ação pedagógica

Como já foi mencionado na apresentação deste trabalho, a teoria psicogenética de Piaget não tinha como objetivo principal propor uma teoria de aprendizagem. A esse respeito, Coll (1992:172) faz a seguinte observação: "ao que se sabe, ele [Piaget] nunca participou diretamente nem coordenou uma pesquisa com objetivos pedagógicos". Não obstante esse fato, de forma contraditória aos interesses previstos, portanto, o modelo piagetiano, curiosamente, veio a se tornar uma das mais importantes diretrizes no campo da aprendizagem escolar, por exemplo, nos USA, na Europa e no Brasil, inclusive.

De acordo com Coll (op.cit.) as tentativas de aplicação da teoria genética no campo da aprendizagem são numerosas e variadas, no entanto os resultados práticos obtidos com tais aplicações não podem ser considerados tão frutíferos. Uma das razões da difícil penetração da teoria genética no âmbito da escola deve-se, principalmente, segundo o autor, "ao difícil entendimento do seu conteúdo conceitual como pelos método de análise formalizante que utiliza e pelo estilo às vezes 'hermético' que caracteriza as publicações de Piaget" (idem p. 174). Coll (op.cit.) ressalta, também, que a aplicação educacional da teoria genética tem como fatores complicadores, entre outros: a) as dificuldades de ordem técnica, metodológicas e teóricas no uso de provas operatórias como instrumento de diagnóstico psicopedagógico, exigindo um alto grau de especialização e de prudência profissional, a fim de se evitar os riscos de sérios erros; b) a predominância no "como" ensinar coloca o objetivo do "o quê" ensinar em segundo plano, contrapondo-se, dessa forma, ao caráter fundamental de transmissão do saber acumulado culturalmente que é uma função da instituição escolar, por ser esta de caráter preeminentemente político-metodológico e não técnico como tradicionalmente se procurou incutir nas idéias da sociedade; c) a parte social da escola fica prejudicada uma vez que o raciocínio por trás da argumentação de que a criança vai atingir o estágio operatório secundariza a noção do desenvolvimento do pensamento crítico; d) a idéia básica do construtivismo postulando que a atividade de organização e planificação da aquisição de conhecimentos estão à cargo do aluno acaba por não dar conta de explicar o caráter da intervenção por parte do professor; e) a idéia de que o indivíduo apropria os conteúdos em conformidade com o desenvolvimento das suas estruturas cognitivas estabelece o desafio da descoberta do "grau ótimo de desequilíbrio", ou seja, o objeto a conhecer não deve estar nem além nem aquém da capacidade do aprendiz conhecedor.

Por outro lado, como contribuições contundentes da teoria psicogenética podem ser citados, por exemplo: a) a possibilidade de estabelecer objetivos educacionais uma vez que a teoria fornece parâmetros importantes sobre o 'processo de pensamento da criança' relacionados aos estádios do desenvolvimento; b) em oposição às visões de teorias behavioristas que consideravam o erro como interferências negativas no processo de aprendizagem, dentro da concepção cognitivista da teoria psicogenética, os erros passam a ser entendidos como estratégias usadas pelo aluno na sua tentativa de aprendizagem de novos conhecimentos (PCN, 1998); c) uma outra contribuição importante do enfoque psicogenético foi lançar luz à questão dos diferentes estilos individuais de aprendizagem; (PCN, 1998); entre outros.

Em resumo, conforme aponta Coll (1992), as relações entre teoria psicogenética x educação, apesar dos complicadores decorrentes da "dicotomia entre os aspectos estruturais e os aspectos funcionais da explicação genética" (idem, p. 192) e da tendência dos projetos privilegiarem, em grande parte, um reducionismo psicologizante em detrimento ao social (aliás, motivo de caloroso debate entre acadêmicos*), pode-se considerar que a teoria psicogenética trouxe contribuições importantes ao campo da aprendizagem escolar.

5. Considerações finais

A referência deste nosso estudo foi a teoria de Piaget cujas proposições nucleares dão conta de que a compreensão do desenvolvimento humano equivale à compreensão de como se dá o processo de constituição do pensamento lógico-formal, matemático. Tal processo, que é explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer, envolve mecanismos complexos e intrincados que englobam aspectos que se entrelaçam e se complementam, tais como: o processo de maturação do organismo, a experiência com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio.

Em face às discussões apresentadas no decorrer do trabalho, cremos ser lícito concluir que as idéias de Piaget representam um salto qualitativo na compreensão do desenvolvimento humano, na medida em que é evidenciada uma tentativa de integração entre o sujeito e o mundo que o circunda. Paradoxalmente, contudo - no que pese a rejeição de Piaget pelo antagonismo das tendências objetivista e subjetivista - o papel do meio no funcionamento do indivíduo é relegado a um plano secundário, uma vez que permanece, ainda, a predominância do indivíduo em detrimento das influências que o meio exerce na construção do seu conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Atenção:

- Esta   atividade  será  realizada à  distância e deverá  ser  entregue impressa,    no  dia  26/10/11

Atividade   referente   ao  texto  acima.

Marque  com V  ou F
1- A criança  pré-operatória:
(   ) é  capaz de  explicar porque a massa que  sua  mãe colocou no  forno se   transformou em  m  bolo.    1.1 [  ]
(  ) pergunta  sobre o  gato  que  viu na  sua  visita à  casa de  sua  avó.  1.2 [  ]
(   ) no  início  do  estágio  pré-operatório,  é  capaz de compreender que  seu " amigo"  está     chorando porque  ela  tirou de  sua  mão   a  bola   que  ele   estava  brincando.  1.3 [  ]
(   ) afirma  que  seu  copo  tem mais suco porque seu  copo é  mais  alto do  que  seu  colega. 1.4 [  ]
(   ) no início do estágio pré-operatório, ao transformar uma  bolinha de argila em  uma  salsicha afirma que  a  bolinha e  a  salsicha não  têm  a  mesma quantidade de massa.   1.5  [  ]

Coloque  nos  colchetes ( localizados ao  final de  cada descrição das atividades 1),  os  números correspondentes às carcterísticas do  pensamento pré - operatório listados  abaixo:
1- reversibilidade
2-egocentrismo
3-transformações
4-centração
5-imagem mental






terça-feira, 20 de setembro de 2011

A construção das noções de espaço e tempo nas crianças da Educação Infantil

                                                                                                                                    João Alberto da Silva*

Júnior Saccon Frezza**


Introdução





       Em geral, os professores de Educação Infantil são receosos em trabalhar as noções de tempo e espaço. Acreditam que esses conceitos são muito complicados, pois envolvem conteúdos da física. Na verdade, usamos as noções de tempo e espaço a todo momento no dia a dia.


Quando vamos atravessar a rua, precisamos pensar na distância que devemos percorrer até o outro lado. Necessitamos calcular, ainda que inconscientemente, o tempo que vamos levar e relativizá-lo em função do fluxo de veículos e pedestres. As noções de tempo e espaço estão nas atividades mais cotidianas e podem ser exploradas com as crianças a fim de promover o seu desenvolvimento.


      A construção da noção de espaço e tempo é um dos elementos fundamentais que constituem a inteligência da criança pequena. (PIAGET, 1937, 1946a, 1946b; PIAGET; INHELDER, 1948). De fato, o espaço e o tempo são apontados por Kant (1980), como elementos essenciais de sensibilidade da realidade.


      Quando o bebê nasce, toda ação inteligente, em um primeiro momento, é fruto dos reflexos hereditários transmitidos através das capacidades genéticas da espécie humana. Todavia, no momento da primeira ação, o intelecto já é capaz de efetuar alguma aprendizagem por mínima que seja. (PIAGET, 1936, 1937). Dali em diante, não falamos mais em reflexo puro, mas de condutas que procuram se adaptar às particularidades do meio. É importante salientar que esses reflexos vêm de uma matriz biológica, isto é, do próprio corpo, e vão se diferenciando em estruturas mentais na medida em que o bebê e o meio vão interagindo.


O corpo constitui-se em ponto de partida de toda noção de espaço e tempo. Entretanto, nos primórdios da vida, sequer esse mesmo corpo tem noção de sua posição no tempo e no espaço. (PIAGET, 1937). É preciso, então, que o recém-nascido construa essas noções para que possa situar a si mesmo dentro do quadro da realidade. Exemplos dessas condutas são os mais diversos. A criança pequena não tem a noção elementar de dia ou de noite e não é capaz de regular seu sono em função disso. O bebê experimenta dificuldade para levar a mão até a boca, pois não coordena o movimento do braço e não tem noção do espaço existente entre a mão e o rosto. Além disso, para chupar o próprio dedo, há uma importante sequência temporal: é preciso fechar a mão, movimentar o braço em direção à boca, abrir a boca, colocar o dedo na boca, fechá-la e só então sugá-la, isto é, uma coordenação progressiva e temporal de diferentes esquemas. Essa noção de tempo ainda não é construída na criança e dificulta a execução dos comportamentos. O bebê procede por tateios e ensaios até atingir seus objetivos. O desejo, oriundo das necessidades do corpo, se constitui como o parâmetro para que durma, coma ou brinque.


Acreditamos que situações pedagógicas podem ser organizadas desde muito cedo para propiciar a construção do espaço e do tempo. Muitos dos brinquedos utilizados na Educação Infantil permitem que a criança explore essas noções. Dessa maneira, discutir a relação entre as práticas pedagógicas da Educação Infantil e o desenvolvimento da inteligência da criança, no que tange à construção das noções de espaço e tempo, é o objetivo deste artigo.





  
A inteligência da criança


      Desde muito cedo, os bebês, no que tange ao desenvolvimento cognitivo, estão ocupados com a adaptação dos primeiros reflexos a atividades de sobrevivência e a construção e coordenação dos primeiros esquemas sensoriais e motores. Os esquemas constituem-se como a construção mental que reúne as características mais gerais das ações. (PIAGET, 1936, 1950, 1967). Eles se configuram como organizações para assimilar as propriedades mais genéricas dos comportamentos, de forma que possam adaptar-se a diversas situações. Os bebês constroem esquemas que se ocupam de atividades como sugar, pegar, puxar, etc., sendo a característica mais marcante do estádio sensório-motor a ausência de representação mental. (PIAGET, 1936). O estádio sensório-motor é caracterizado por uma estrutura mais profunda, que define as atividades lógico-matemáticas da inteligência. No caso dos bebês, de acordo com Piaget (1936, 1937, 1945), não podemos encontrar um pensamento em termos representativos. Trata-se de uma inteligência prática e, por isso, sensório-motora, que se apoia em uma estrutura lógico-matemática, cuja construção antecede mesmo a função simbólica e a capacidade de representar as coisas em pensamento.


      Nos primeiros meses de vida, a estrutura lógico-matemática que vai se construindo a partir da coordenação dos primeiros esquemas volta-se para a noção de objeto permanente. Quando os bebês são muitonovos, tendem a acreditar que os objetos desaparecem quando somem de seu campo de visão. (PIAGET, 1936, 1937). A observação clínica permite identificar esses comportamentos através da constatação do desinteresse dos bebês diante da ocultação de um brinquedo, o qual eles passam a considerar como inexistente. Por volta dos 10 meses de vida, com variações de acordo com a cultura e as possibilidades de interação dos bebês, a estrutura do objeto permanente está próxima deser construída, e os comportamentos começam a mudar. Ele sabe que quando a mãe sai do quarto, ela não deixa de existir ou que o brinquedo que escorrega para trás de um anteparo continua ali. A observação dessas condutas permite revelar uma importante estrutura lógico-matemática subjacente que antecede a linguagem e demonstra como a inteligência está, inicialmente, ligada à organização do corpo e das próprias ações.


Com o desenvolvimento da estrutura do objeto permanente, os bebês têm de se organizar para procurar os objetos que desaparecem de seu campo de visão. Isso significa que, agora, eles precisam adaptar novos movimentos de sua cabeça, de seu tronco, de suas pernas e de seus braços, de suas mãos e do corpo em geral. O bebê passa a se situar em um espaço no qual pode se deslocar. (PIAGET, 1937). Com esses desdobramentos, aliados a um desenvolvimento dos músculos e da coordenação motora, os bebês organizam sua estrutura lógico-matemática do pensamento de maneira mais sofisticada. Essa estrutura ainda é muito simples e é chamada “grupo de deslocamento”, pois suas características de organização da inteligência ainda estão voltadas ao movimento no espaço. Com o advento do “grupo de deslocamento”, o bebê agora pode virar-se e voltar a uma posição inicial, pode acompanhar o trajeto de uma pessoa que caminha, engatinhar por diversos percursos e voltar ao ponto de partida, etc.



                                                                                              



                                                   Figura 1: “Grupo de deslocamento”
                                                        Fonte: Elaborada pelos autores.



      Na figura anterior, podemos ver variações de deslocamento em um sistema de quatro pontos. Essa estrutura começa a ser construída com base na noção de objeto permanente e é uma das grandes qauisições da inteligência sensório-motora. O “grupo de deslocamento” não se refere apenas à coordenação com o espaço, mas também do bebê em relação aos outros objetos, entre partes de seu próprio corpo e, também, as coordenações entre dois objetos distintos. Em resumo, a estrutura lógicomatemática que sustenta o estádio sensório-motor ocupa-se da construção do real e das adaptações iniciais dos bebês ao mundo físico. O desenvolvimento está focado nas habilidades motoras e na organização das sensações. O corpo configura-se como o primeiro elemento de organização no espaço e no tempo. Essas características definem a estrutura sensório-motora muito mais do que a idade cronológica em que está a criança. Ela pode variar em função dos meios sociais e culturais e, principalmente, na dependência das interações entre os bebês e esses meios.

      As contribuições que o entendimento do estádio sensório-motor produz para a educação são inúmeras. As práticas de Educação Infantil podem ser revistas não só como uma atividade de limpeza, alimentação e manutenção mínima da sobrevivência da criança, mas podem voltar-se para uma experimentação dos objetos, das texturas, dos sons e das sensações em geral. Um comportamento muito comum dos bebês nas escolas de Educação Infantil é pegar um brinquedo e jogar repetidamente contra um anteparo ou ao chão. Alguns professores, equivocadamente,retiram o objeto do alcance do bebê e o impedem de experimentar essa atividade. Contudo, por que seria importante um bebê jogar 20 vezes uma bola no chão? Durante essa atividade, cada uma das vezes em que ele joga a bola no chão está experimentando e aprendendo características daquele objeto, testando novas formas de jogá-lo, observando diferentes reações. A importância dessas atividades se expande para outras condutas típicas de crianças pequenas, como bater um objeto contra outro para produzir um som, passar por baixo de móveis, tentar abrir portas e brincar com chaves. Todas essas condutas estão regidas por essa estrutura sensório-motora que lhe permite uma inteligência prática capaz de fornecer dados para uma adaptação em relação às necessidades que surgem a cada instante. De fato, aquilo que aos olhos do leigo parece uma atividade sem sentido, pode ser identificada como uma experimentação da distância entre os objetos, da sequência temporal que é preciso estabelecer para se obter um determinado objetivo, isto é, o bebê é um sujeito muito ativo e está experimentando muitas coisas em suas singelas condutas.


 A Educação Infantil, no que tange à construção do espaço e do tempo, pode se configurar como um importante momento no qual as crianças exploram as possibilidades do meio, encontram desafios para chegar de um ponto ao outro, aprendem os elementos sequenciais para realizar uma tarefa.

Por volta dos 2 anos, acontece uma revolução na mente da criança. Com o desenrolar da adaptação dos esquemas sensório-motores, começam a acontecer coordenações que geram comportamentos cada vez mais organizados. As condutas que anteriormente restringiam-se à organização dos movimentos e das sensações, começam a dar lugar a imitações, a brinquedos e a alguns indícios de representação. Os esquemas sensóriomotores, até então restritos a uma inteligência prática, começam a organizar-se em um plano representativo. (PIAGET, 1945). As condutas não apresentam apenas um incremento de quantidade, mas também de qualidade. Os esquemas representativos implicam outras possibilidades de interação entre o sujeito e os objetos que são o foco de sua atenção. A estrutura lógico-matemática do grupo de deslocamento organiza-se em um novo patamar, e a função simbólica permite o aparecimento da linguagem, do pensamento representativo e de pré-operações, que vão caracterizar esse estádio.


      As crianças muito pequenas ainda se perdem em devaneios (pensamento sincrético), têm muita dificuldade de compreender o professor e é muito complicado para elas diferenciar aquilo que elas realmente acreditam, do que dizem ser o resultado de uma fantasia momentânea. As condutas evidenciam uma centração sobre si mesmo.


Para Piaget (1950), essa característica do pensamento pré-operatório é chamada “egocentrismo”, sendo esse termo entendido como uma centração cognitiva sobre si mesmo ou, em outras palavras, uma dificuldade de coordenar diferentes pontos de vista. Demonstrações de egocentrismo podem ser vistas nos fenômenos físicos que, muitas vezes, são explicados em função das ações da própria criança, tais como “a lua se move porque eu caminho” ou “chove porque estou triste”. (PIAGET, 1926). O jogo simbólico desenrola-se sobre a forma do brinquedo, e as condutas demonstram pré-operações mentais que submetem o real aos desejos do eu. Há margem para que o impossível, o inacreditável e a fantasia sejam confundidos como possíveis ou até mesmo reais. (PIAGET, 1945). O espaço e o tempo estão ligados a um caráter exclusivamente subjetivo. A criança pequena mensura uma distância ou passagem do  tempo em função, principalmente, das sensações do seu corpo, isto é, algo pode passar muito rápido, se é prazeroso, ou muito devagar, se é desagradável. A primeira noção de tempo gira em função do desejo próprio da criança, que está, em geral, longe de se adaptar ao tempo cronológico. O corpo influencia a construção de um tempo subjetivo e ainda não muito estruturado. De acordo com Piaget, a criança pequena elabora as noções de espaço e tempo por meio de um descarte progressivo e gradual do egocentrismo. A ruptura da exclusividade do próprio ponto de vista da criança permite a superação do egocentrismo infantil e a construção objetiva, isto é, da realidade dos fatos, das noções de espaço e tempo. Um exemplo muito recorrente acontece quando a criançaescolhe comer uma guloseima – um sorvete ou chocolate – bem devagar, pois assim “dura mais”, como se a quantidade de doce dependesse da duração do evento de consumi-lo.
     

      A rotina na Educação Infantil configura-se como um importante instrumento de construção do tempo. A criança, mesmo que não tenha construído essa noção em termos convencionais, pode marcar a passagem do tempo através dos acontecimentos do seu dia. Existe a hora da brincadeira, a do lanche, a do descanso, etc. Cada um desses eventos tem uma duração e um lugar dentro da rotina. Essas características, mesmo que subjetivas (passou rápido, passou devagar, está demorando, a sequência das atividades, etc.) permitem que a criança conviva e interaja com a noção de tempo. Diversos exemplos podem ser percebidos na Educação Infantil. A criança que frequenta a escola pela manhã está habituada a acordar e a ir ao colégio. Se ela dorme durante a tarde e acorda à noitinha, pede para ir à escola. O tempo ainda não é o cronológico, mas o da sequência de procedimentos, isto é, vai-se à escola quando se acorda.
     

      No que tange ao tempo, a dificuldade de superar o egocentrismo está, principalmente, em contrapor o tempo cronológico ao tempo subjetivo. A impressão que as sensações deixam no corpo da criança pequena supera o tempo do relógio. Na Educação Infantil, diversas práticas podem colaborar com a construção da noção de tempo. A música e o lúdico podem se tornar elementos que auxiliam nessa construção. O compasso e o ritmo musical são, de fato, marcações de tempo, e o acompanhamento que as crianças pequenas fazem com palmas, batidas de pé ou, até mesmo, com instrumentos, pode ser uma possibilidade de interação com a noção de tempo. O tempo das crianças da Educação Infantil é o tempo de suas ações. Em função disso, cabe ao professor, justamente, organizar as atividades dos pequenos para que a organização de sua duração e a sequência sejam elementos também de aprendizagem.
     

       As condutas mais observadas na Educação Infantil, que sofrem influência do egocentrismo intelectual, envolvem a dificuldade de um se pôr no lugar do outro. No que tange ao espaço-tempo, as crianças pequenas têm dificuldades de representar objetos e acontecimentos que não sejam a partir de sua própria perspectiva. Os estudantes têm dificuldades para copiar um objeto-modelo, pois a criança encontra empecilho durante a tarefa de conciliar um objeto real com a sua subjetividade e, em geral, prevalece essa segunda opção. Quando pedimos que os pequenos desenhem, por exemplo, uma caneca que está sobre a mesa, além da dificuldade motora, existe o problema de adaptar as formas reais a uma representação pictória. Na verdade, até mesmo alguns adultos têm essa dificuldade cognitiva, não sendo capazes de representar objetos pelo desenho. Um dos principais elementos que influenciam essa situação é o espaço. Para que possamos representar no papel um objeto, é necessário considerar as dimensões espaciais do próprio objeto e dos elementos que o compõem. Se as relações de tamanho dos elementos em relação ao plano de referência não estão bem-elaboradas, então a representação não se torna muito compreensível. Todavia, para a própria criança que elabora o desenho, a figura representa o objeto que ela se propôs a desenhar, pois seu pensamento se coloca da seguinte maneira: “Se eu entendo que esse desenho representa uma caneca, então todos os outros também.” De fato, quando os adultos questionam as crianças sobre o que seriam os seus desenhos, elas demonstram certa impaciência, pois lhes parece óbvio o que está diante dos olhos do apreciador.




 

Considerações finais


Os problemas de espaço e tempo que as crianças enfrentam não envolvem complicados conteúdos da física, mas se referem a coordenar movimentos em suas ordens temporal e espacial, enfim, em organizar os comportamentos confrontando aspectos subjetivos (influenciados pelo egocentrismo) com a realidade objetiva. A sistematização dessas condutas desde a infância influencia fortemente o desenvolvimento da inteligência e repercute por toda a vida do sujeito.


      A Educação Infantil pode desenvolver atividades pedagógicas que visem a desenvolver as noções de tempo e espaço, mesmo nos bebês.
Pode-se, assim, superar antigas práticas que almejavam apenas o cuidado dos pequenos. Acreditamos que a possibilidade de experimentação de atividades que envolvam o tempo e o espaço pode contribuir para o desenvolvimento da criança, não apenas com o intuito de prepará-la para o Ensino Fundamental, mas para que possa se desenvolver e viver plenamente a sua infância. Temos aí mais um elemento que destaca a importância da Educação Infantil e a formação de qualidade dos profissionais envolvidos.



 
* Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: joao.alberto@ufrgs.br

**Licenciado em Física. Mestrando em Educação. Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: junior.frezza@ufrgs.br




Referências

KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

PIAGET, Jean [1926].1 A representação do mundo na criança. Rio de Janeiro: Record,

[s.d.].

______. [1932] O juízo moral na criança [Le jugement moral chez l’enfant]. São

Paulo: Mestre Jou, 1977.

______. [1936] O nascimento da inteligência na criança. [La naissance de l’intelligence

chez l’enfant]. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

______. [1937]. A construção do real na criança. [La construction du réel chez l’enfant].

Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

______. [1946a]. A noção de tempo na criança. [Le développment de la notion du

temps chez l’enfant]. Rio de Janeiro: Record, [s.d.].

______. Les notions de mouvement et de vitesse chez l’enfant. Paris: PUF, 1946b.

______. Introduction à l’épistémologie génétique. Paris: PUF, 1950.

PIAGET, Jean; INHELDER, Barbel. [1948]. A representação do espaço na criança. [La

représentation de l’espace chez l’enfant]. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.